Vivemos uma era estranha. A cada clique, comentário ou curtida, vamos deixando rastros que contam uma história — a nossa. Mas e se um dia tudo isso fosse apagado? E se, de repente, sua trajetória digital desaparecesse, sem aviso, sem defesa, sem chance de ser lembrado? Foi o que aconteceu comigo.
Durante 15 anos, mantive um perfil ativo no Twitter. Ali, publiquei pensamentos, piadas, reações, brigas, ideias e desabafos. Era um retrato de quem fui — imperfeito, claro, mas legítimo. Um pedaço da minha história, acessível a quem quisesse conhecer. Até que, por críticas políticas nas eleições de 2022, meu perfil foi sumariamente excluído. Sem contraditório, sem explicação, sem backup. Uma morte civil digital. Uma forma moderna de apagamento existencial.
Essa experiência pessoal acendeu em mim uma reflexão mais profunda: quem tem o poder de decidir quem pode ou não existir digitalmente? E mais — será que nossos rastros virtuais não são parte da nossa identidade? Não mereceriam, por isso, algum tipo de proteção?
A resposta, para mim, é sim. Os dados que deixamos online — textos, fotos, preferências, opiniões — são fragmentos vivos de quem somos. Não são apenas “informações”. São partes da nossa biografia. E, num futuro próximo, com o avanço da inteligência artificial, poderão inclusive servir como base para recriar versões digitais de nós mesmos. Avatares conscientes? Provavelmente. Mas, no mínimo, memórias organizadas, capazes de consolar filhos e netos.
É aí que entra a necessidade de reconhecimento jurídico: se nossos rastros digitais carregam afeto, história e identidade, eles não podem ser tratados como lixo deletável ao sabor do humor de uma empresa ou da pressão de um governo. Precisamos de garantias mínimas: direito à defesa, acesso aos dados, portabilidade, possibilidade de arquivamento pessoal. Em outras palavras: o direito fundamental de existir — mesmo online.
Desenvolvi essa ideia com mais profundidade em um artigo jurídico recente, onde proponho o reconhecimento do direito à memória digital como extensão da personalidade humana e como nova fronteira de proteção fundamental na era da inteligência artificial.
O apagamento digital, além de ferir a liberdade de expressão, ameaça a continuidade simbólica da nossa existência. Se hoje temos direito à imagem, ao nome, à honra e à memória, por que não incluir a identidade digital nesse rol? É o próximo passo natural. Afinal, já não somos apenas carne e osso. Somos também nuvem e código.
Essa discussão, claro, incomoda. Fala de futuro, de morte, de algoritmos que decidem quem “pode estar aqui” e “quem pode continuar existindo”. Mas é justamente por isso que precisamos enfrentá-la. Antes que seja tarde. Antes que nossas histórias sejam apagadas por engano, conveniência ou censura.
Não se trata de proteger fake news ou relativizar responsabilidades. Trata-se de afirmar que a memória — inclusive a digital — pertence ao indivíduo, não à plataforma. E que ninguém, absolutamente ninguém, deve ter o poder de apagar uma vida com um clique.
O Direito, se quiser continuar sendo ferramenta de justiça e não de controle, precisa acompanhar essa transformação. Precisa garantir que o ser humano, em sua nova versão híbrida (física e digital), seja reconhecido, respeitado e protegido.
O futuro da democracia passa também por isso: o direito de existir, de ser lembrado e de contar a própria história — até o fim.
